Ajudei a libertar a Europa de Leste | In: Correio da Manhã |
Mário Portugal nos dias de hoje, na sua oficina/escritório de Benavente, onde continua a construir engenhocas – e onde escreve os textos que trarão a posteridade às suas actividades do passado |
Ainda hoje, quando encontro um imigrante de Leste aqui em Benavente, a
primeira coisa que lhe pergunto é: ‘Costumava ouvir a Rádio Europa Livre?’ E ele
diz-me quase sempre, sobretudo se se trata de uma mulher: ‘Ouvia, e com imenso
gosto!’”, conta Mário Portugal. Rádio-amador e apaixonado da electrónica, este
antigo funcionário da RARET, empresa de rádio-retransmissão instalada em 1949 no
Ribatejo por uma ONG norte-americana, colaborou durante mais de 30 anos no
projecto Radio Free Europe, uma emissora de ondas curtas sediada em Nova Iorque,
com estúdios de realização em Munique e reemissões a partir de Portugal para
oito países do Leste europeu, entre os quais a Polónia, a Hungria e a
Checoslováquia. Objectivo: sensibilizar as populações sob jugo soviético para os
méritos da democracia.
Patrocinada primeiro pela associação cívica Freedom Crusaders (’Cruzados da
Liberdade’) e mais tarde pelo próprio Estado americano, a RARET funcionou até
1996, tornando-se obsoleta após a queda do Muro de Berlim. Mário Portugal
Bettencourt Leça Faria foi um dos seus mais diligentes e inventivos técnicos,
fintando com paixão a contra-informação soviética, dirigida pelo KGB, e vindo a
criar o Boletim Técnico Interno da empresa, que se publicou durante mais de uma
dezena de anos. “Sinto-me muito orgulhoso por ter contribuído para que aqueles
milhões que estavam do lado de lá alcançassem a liberdade”, diz.
Foi um professor da escola primária quem primeiro mostrou um aparelho de rádio a
Mário Portugal. “Chamava--se Santos. Tinha um rádio com um grande caixote de
baterias e, como ele já não funcionava, lembrou-se de no-lo oferecer”, conta. “O
meu avô, que era médico mas muito entusiasta de outras coisas, mandou-nos
desmontar todas as baterias, para as limpar e rectificar as ligações. Depois,
fez os líquidos necessários e o aparelho começou logo a ‘piar’, deixando-nos
ouvir milhares de estações telegráficas.”
Nascia então uma paixão pela electrónica (e pela tecnologia em geral) que
acompanharia Mário Portugal para o resto da vida. Adolescente curioso, Mário
constrói primeiro uma máquina fotográfica e depois um projector de cinema de
35mm. Mudado ainda jovem para Lisboa, trabalha nos escritórios do Arsenal do
Alfeite, para sobreviver. Acometido de uma tuberculose, porém, é internado no
Sanatório Central do Caramulo, onde permanece durante cinco anos – e é aí que,
apesar dos diagnósticos médicos que o davam como a caminho da morte, reactiva o
seu interesse pelo som e pela imagem. Primeiro torna-se rádio-amador (nome de
código: CT1DT), montando aparelho próprio e aprendendo as técnicas com o irmão
mais velho, que lhe escrevia para o Caramulo. Depois começa a projectar filmes
de animação no Sanatório Infantil. E, quando mais tarde regressa a Lisboa, já
não vai para o Alfeite, onde a humidade podia contribuir para que a sua saúde
rapidamente voltasse a deteriorar-se.
“Um amigo rádio-amador falou-me então numa firma americana que estava a
instalar-se no Ribatejo, onde de resto já trabalhava um colega nosso, que usava
o nome CT1CW. Escrevi-lhe, mas não obtive resposta. Fiquei muito amargurado. Só
que, um dia, passeando por Lisboa, vejo os cartazes da Embaixada dos EUA e
decido entrar, pedindo para falar com o cônsul”, explica. “Disseram-me à porta
que ele não recebia qualquer pessoa. Mas acabou por receber-me. E então eu
comecei a explicar-lhe que gostava muito de electrónica, que sabia da existência
recente da RARET E ele: ‘Não diga mais nada. É trabalhar, o que você quer? Tome
este cartão e vá falar a esta morada. Diga que vai da minha parte.’ E é assim
que começa a minha relação com a RARET.”
O que vem a seguir é um longo relato sobre a intensa, persistente e ascendente
actividade da Rádio Retransmissões, SA, polvilhado de siglas referentes a
frequências, potências e amplitudes geográficas. Criada sob o beneplácito de
Salazar, a empresa não obtivera de São Bento, contudo, mais do que autorização
para funcionar com um mero “espelho”, recebendo emissões do estrangeiro e
reemitindo-as para países terceiros. Instalada numa região com grande
implantação comunista, teve de lidar primeiro com a desconfiança das populações
locais e mais tarde com o cerco que lhe foi feito pela imprensa durante o PREC.
Garatujas inscritas um pouco por toda a cidade de Benavente chegaram a acusar a
RARET de estar ao serviço da CIA. Residentes de Benavente, Glória e outras
povoações ribatejanas temiam a sua presença.
Mas o facto é que o projecto persistiu. A onda curta tem uma emissão em estilo
“circunflexo” com cerca de 2000 km de alcance, os primeiros mil a subir e os
restantes a descer. Portugal era, por assim dizer, o ponto de viragem no
trajecto, a etapa última da vinda das ondas e a primeira do seu regresso através
de outras estações dispersas pela Europa. “O mais engraçado era quando os russos
detectavam uma frequência e começavam a provocar interferências no sinal. Aí é
que começava o jogo do gato e do rato. Então abríamos outra frequência e
mudávamos a emissão de imediato. Eles vinham atrás de nós e nós já estávamos na
primeira frequência outra vez”, conta Mário Portugal.
Sucessivamente injectada com material mais potente e sofisticado, que chegou a
fazer dela a terceira mais potente emissora de rádio-frequência do Mundo (logo a
seguir à BBC e à informação soviética), a RARET serviu de plataforma de rádio
até depois da desintegração do Bloco de Leste, resistindo ainda durante sete
anos ao final da Guerra Fria e servindo na sua fase final para a monitorização
das novas democracias pós--Pacto de Varsóvia. Os conteúdos eram fundamentalmente
provenientes de Munique, onde os mais diversos dissidentes de Leste se
concentravam. Missas, relatos de futebol, música – havia de tudo, sempre com a
ideia da liberdade como pano de fundo.
Os funcionário da RARET não percebiam uma palavra: era tudo falado em línguas
eslavas. Entretanto, porém, a empresa começou a contratar tradutores
provenientes dos países receptores das emissões – e, finalmente, alguma luz
começou a fazer-se nas cabeças de homens como Mário Portugal. “Sempre falei bem
com os comunistas, antes, durante e depois do 25 de Abril. Mas também sempre fui
anticomunista. E, quando hoje falo com um comunista e ele se põe a criticar os
americanos, digo-lhe logo: ‘Falas muito bem, mas foste mais um daqueles que
encheram os bolsos à custa da RARET, que te comprou materiais ou que te
contratou mão-de-obra. Já do lado dos russos, nunca ganhaste nada. Foi só
conversa”, conta. “Mas isso é agora. Antes, quando lá trabalhávamos, não
podíamos falar Em todo o caso, foi uma vida feliz”, garante o próprio.
A PAIXÃO DA AVENTURA
Máquinas fotográficas, projectores de cinema, aparelhos de diatermia, asas-delta
– Mário Portugal já construiu de tudo. Instalado no seu rés-do-chão em
Benavente, com oficinas e escritórios onde convivem relíquias da tecnologia e
acessórios informáticos de ponta, a sua vida passa-se hoje, em parte, a recordar
essas experiências, combatendo com energia a solidão da viuvez. Meios: os
aparelhos de rádio-amadorismo e a própria internet. É da sua autoria, por
exemplo, o blog Engenhocando (www.engenhocando.blog.com),
onde se republicam alguns dos muitos artigos técnicos que assinou em jornais
regionais ou boletins de associações de rádio-amadores.
“Eu serei, talvez, um inconformado, porque quase sempre, em toda a minha já
longa vida, sempre que pergunto a alguém por que é que as coisas são assim e não
de uma forma diferente ou até contrária, normalmente, chego à conclusão de que,
em todas as profissões, toda a gente sabe muito pouco”, costuma dizer. E então
dá asas à sua “insaciável necessidade” de encontrar por si próprio “os porquês
de tudo.”
FICHEIRO RNH N.º 38
Nome: Mário Portugal Bettencourt Leça Faria
Idade: 79 anos
Naturalidade: Ginetes
Profissão: Rádio-operador (reformado)
In: Correio da Manhã: http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=220761&idselect=9&idCanal=9&p=200
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Página "Mário Portugal " actualizada em: 13-11-2006 | ||
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