Ser radioamador

 

Guardo na memória a peregrinação que fiz ao Estádio do Mar, para ver o Leixões jogar contra o Sporting. Um vizinho entendeu que eu devia ver um jogo de futebol profissional, para perceber a beleza e a arte envolvidas numa partida.

Desta experiência retive um pormenor insignificante, mas perturbador: para minha surpresa, um sem numero de espectadores que assistiam ao jogo, mantinham o seu rádio portátil na mão ou pousado na bancada a seu lado. E em altos brados de toda a parte se ouvia o comentador em uníssono a relatar o jogo que eles estavam a ver com os próprios olhos.

Esta foi uma pratica que demorei longos anos a compreender, e no mesmo espírito, deixo-vos o meu relato de uma experiência de radioamadorismo que apesar de se enquadrar em tantas outras, vos chega com aquele toque único e subjectivo da minha perspectiva.

Certo dia o Alfredo resolveu levar as tralhas dele de electrónica para a oficina do meu pai. E belas tardes lá passamos. Naquele tempo as crianças brincavam junto dos pais, gravitando as suas actividades, bebendo os seus interesses, as suas paixões, participando, aprendendo brincando, crescendo e tomando o seu lugar na casa e no mundo.

Lembro-me dos circuitos que me punha a montar nas breadboards, contadores de todo o tipo com saídas a LED, mas o projecto que realmente iluminou o meu imaginário foi um pequeno microfone sem fios, que ele montou finalmente, e que mal emitia para lá da porta de entrada do anexo.

E depois desapareceu. Não houve mais Alfredo.

Mas ficou aquela sementinha, aquela centelha de magia, de chegar de A a B com meia dúzia de fios, resistências e pouco mais. Durante anos... dormente, latente. Mais tarde, numas revistas argentinas que o meu pai recebia, as "Hobby", descobri o circuito de um receptor de rádio intrigante, que não precisava de qualquer fonte de energia para se ouvir musica...
Sozinho, tentei monta-lo. Não funcionava. Usei os componentes que consegui encontrar na oficina do pai. Não sabia nada, mas tinha vontade e energia. Tentei outra vez. Sem sucesso. E mais outra... frustração de novo... finalmente questionei o pai. Por razões que nunca compreendi, ele nunca me ajudou a montar aquela galena, o que me lembra: um dia destes terei de lhe perguntar porquê... talvez para testar e alimentar a minha persistência. Um pai lá sabe o que faz.

Anos depois acabei por estudar electrotecnia, mas o que gostava mesmo era de electrónica. Portanto tratei de procurar livros de electrónica e revistas com kits e outras tantas frustrações depois fui estudar electrónica... e depois informática... e finalmente começou a fazer algum sentido.

Toda aquela energia... aqueles anos todos, aquele desperdício tremendo de tempo, vontade e até dinheiro. Teria bastado um Alfredo ali presente de vez em quando para me ter projectado no infinito, em horas e horas de diversão didáctica e cientifica com resultados tangíveis além de teimosia e sonhos de criança para persistir e construir.

Por esta altura já estava espigadote, e ocorreu-me que se andava a fazer "coisas", talvez fosse melhor regularizar a situação e tirar a licença de radioamador.
Sabia que tal coisa existia, porque havia sido escoteiro e como tal, no âmbito dos jamboree's já se havia falado em recrutar um par de elementos para se aproximarem da temática do radioamadorismo... Já na época me recordo de ter submetido uns textos para a atribuição a especialidade de "electricista" e da mesma me ter sido negada. Mal sabiam eles que estava perfeitamente capacitado montar um automatismo para arranque estrela-triângulo de um motor trifásico ou mesmo para calcular colunas montantes de edifícios... Não foi importante, o que eu queria era mesmo deitar as mãos a uns rádios...

Liguei para a ANACOM, tiveram a amabilidade de me enviar um caderno com a legislação necessária que estudei e lá fui ao Viso tratar do assunto, fiz os exames que foram corrigidos de seguida e recordo-me do comentário de quem lá estava e me apresentou os resultados. Disse-me que estava ao contrario do habitual... forte em electrónica e mais fraco em legislação. Não me admirou, mas encheu-me o peito de orgulho. Já não pegava num livro há algum tempo e os meus débeis conhecimentos ainda chegaram para rematar o assunto.

Mas eu sabia que sozinho não iria muito longe e tinha sede de mais, então perguntei se por acaso me podiam facultar os contactos das associações de amadores da zona. O olhar que trocaram entre si foi curioso, e fizeram-me algumas perguntas que já não me recordo, mas fiquei com a sensação de que era inconcebível um radioamador, que eu já era naquele momento na categoria B, não saber o que era uma associação de radioamadores, etc... acabaram por muito imparcialmente me fornecer três nomes de associações e respectivos contactos, depois de terem validado internamente se o poderiam fazer.

Mas estávamos já bem dentro da era da Internet, e acabei por não me aproximar na altura de nenhuma associação de radioamadores. Li vários artigos ao longo do tempo e sempre havia largas sessões de genuína peixeirada, que me motivaram (e motivarão) a manter-me bem longe de todo o reboliço. O IRC ajudou a manter um certo contacto com alguns radioamadores jovens como eu mesmo, mas sempre sem grande actividade da minha parte, estava numa fase de grande dedicação a outros desafios menos lúdicos e mais profissionais.

No âmbito dos Jamboree's em que acabei por participar espaçadamente ao longo dos anos, encontrei alguns radioamadores, com quem aprendi imenso, que me motivaram a aprender coisas novas e a tomar contacto com equipamentos e tecnologias que desconhecia.

Saliento também a diversidade que reconheci neste contacto dado que percebi que existem diversos tipos de radioamadores, mas curioso como todas estas nuances dentro da classe tem o seu valor e muito para partilhar ou simplesmente transmitir. Todas as vertentes do radioamadorismo são ricas. Se alguns sabem calcular uma linha de transmissão, outros operam com arte num pile-up... todos tem algo de valor a trazer à mesa, quanto mais não seja o sangue frio de passar um dia inteiro no alto de uma escada de três lanços...

Hoje compreendo que a rádio é algo magico. Continua a ser. Fundos incomensuráveis são aplicados diariamente para expandir manter e operar a Internet, a rede de comunicações global. Mas um simples radioamador, até com o seus equipamentos caseiros consegue fazer chegar informação ao outro lado do globo, por uns tostões de electricidade ou até de borla se usar um painel solar.

Em cenários de calamidade, podem também os radioamadores assumir um papel nobre e cívico. Tive conhecimento de uma iniciativa de uma associação de amadores muito interessante neste campo, pena que pouco expressiva em termos de adesão.

Hoje, monto esporadicamente aquilo que acho piada chamar de "estação" e acabo por fazer maioritariamente escuta, mas o que me dá mesmo prazer, é aprender e construir alguma coisa.

E se me quiserem chamar criminoso porque tenho uma criança de 6 anos em casa, que sob a minha supervisão vai invariavelmente participar de todas as minhas actividades dentro deste hobby, pois assim seja. Sou Português, infelizmente e como tal, já me habituei a considerar a legislação como uma linha mestra e não como uma regra inviolável. E não, não sou taxista.

Volta e meia vou a Lisboa e logo me chamam o mesmo, e até me convidam a aumentar a minha participação directa no Orçamento de Estado... e nada significativo muda... Bom, fico um pouco mais pobre...

Não obstante estou certo que não tem de ser assim. Não devia ter de incorrer em risco de pesadas coimas apenas porque quero incluir os iniciados em actividades que podem perfeitamente realizar desde que eu assegure que não vão perturbar ninguém em estrito cumprimento do restante regulamento e acima de tudo: bom senso.

 

Um radioamador do Norte

 

 

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 Página "Ser radioamador" actualizada em: 20-11-2016
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